Desde os tempos do Jornal do Teatro, desenvolvi o hábito de escrever o que chamei de Pensamentos Insignificantes Sobre Teatro em plataformas diversas. Chamo de “insignificantes” não por exercício de falsa modéstia, mas por acreditar – mesmo – que importem para poucas pessoas. E aqui vão mais alguns.
O Grupo Galpão novamente sai das Minas Gerais e está em São Paulo. Após passarem uma temporada gloriosa no palco do Teatro Rival (RJ) e do Festival de Curitiba, os mineiros nos brindam com um novo presente: Cabaré Coragem. Sou fã do Galpão e seu teatro há décadas. Eu os vi em Romeu e Julieta nos Jardins do Parque da Independência; os vi em Till no Festival de Curitiba e outras tantas produções que me sobram na memória como o lírico Tio Vânia (que tinha um subtítulo por si em forma de legado – Aos que vierem depois de nós – e com direção da também mineira Yara de Novaes).
Depois de tudo isso, a gente acha que não vai se surpreender. E somos completamente capturados pela alegria, pela verdade e Coragem deste Cabaré que passa em turbilhão pela Zona Leste de São Paulo ao mesmo tempo em que outro Cabaret se instala nos rooftops da Zona Sul. Não há certo ou errado. O que há é variedade. Varieté, mes amis!
Como não vi o segundo, vou escrever sobre o primeiro e mais corajoso. Uma aula de cabaré mineiro... E antes que continue, transcrevo o poema de Drummond
A dançarina espanhola de Montes Claros
dança e redança na sala mestiça
Cem olhos morenos estão despindo
seu corpo gordo picado de mosquito.
Tem um sinal de bala na coxa direita,
o riso postiço de um dente de ouro,
mas é linda, linda gorda e satisfeita.
Como rebola as nádegas amarelas!
Cem olhos brasileiros estão seguindo
o balanço doce e mole de suas tetas....
Repito: uma aula de cabaré. E de Teatro de Variedades, Vaudeville Francês, humor de cadafalso alemão, pegadinhas brasileiras! Estão ali as falsas dançarinas latinas com seu sotaque igualmente capenga, as exploradas por Duran em a Ópera do Malandro, as excluídas e baleadas, os corpos reais, os rostos reais, os excluídos do capitalismo selvagem, as vítimas da divisão de uma sociedade entre ‘esses e aqueles, deles e delas, meus e seus’.
Definitivamente, o Galpão não precisa dos meus pensamentos. Mas todos nós precisamos do Galpão. Esses artistas com mais de 40 anos de trajetória fazendo teatro de grupo trafegaram das tragédias de Shakespeare aos dramas da burguesia russa, das farsas medievais às colagens de textos aparentemente coincidentes – mas sempre com consequências (sobre isso, procurem conhecer os livros, os DVDs e CDs da companhia – documentar é preciso!) E é o que fazem com Cabaré Coragem.
Eles entram em cena como uma trupe decadente, consciente de que está envelhecida e sempre a serviço de uma emblemática Madamme (Teuda Bara, a decana dona da gargalhada mais brechtiana do mundo). Nesse sentido e a partir daí, a palavra ‘função’ como usada em circo para designar uma performance, ganha o caráter da obrigação, do trabalho e até do agrilhoamento. Madame os mantém ali presos para ganhar dinheiro para ela. Seria o esfomeado e insaciável capitalismo?
Lembrei imediatamente de um texto do argentino Roberto Cossa – La Nonna – que vi com Cleyde Yáconis nos anos 1980. Lembrei de Maria Alice Vergueiro em A Velha Dama Indigna, e também dela em Mahagony e Mãe Coragem. Lembrei de Cida Moreira. Mais uma vez lembranças que só a Coragem deste Cabaré poderia evocar provocando em mim uma alternância ciclotímica de risos, gargalhadas e lágrimas.
O elenco é despido e se entrega como num ato de amor, de luz acesa, com todos os truques revelados, sem mistérios – como deve ser a Verdade – nua e crua. Eles apenas sete performers e parecem muitos; revezam-se no pequeno tablado, nos instrumentos musicais e na trilha sonora; alternam a função de cabaretier; fazem números de plateia e clássicos do teatro de variedades; navegam de piadas bobas ao fraseário profícuo de Bertolt Brecht – arrancam tolas gargalhadas e sorrisos de gosto amargo.
E o que resulta é uma dramaturgia urdida a partir do ator, do experimento do performer. E cabe tudo nesse caldeirão habilmente misturado pelas mãos talentosas de uma firme equipe criativa: luz vermelha, roupa de tule, meia arrastão, peruca de penas, caixotes em cena, o melhor do brega, “pérolas do nosso machismo musical”, show de variedades com crítica política, Joan Baez e Mercedes Sosa, Elis, Monga a macaca de circo (cortada do fino Cabaret do rooftop) e, num apoteótico gran-finale, a antropofagia das classes dominadas contra as dominantes. Nada mais brasileiro – se tivéssemos Coragem!
Puristas do nosso teatro musical viciado e poluído de bródueis poderão se ressentir de que a Banda Gangorra (com altos e baixos) não tem a excelência de um grande musical; ou que as coreografias estão perto do passinho de gafieira ou do dois-pra-lá-dois-pra-cá dos boleros de inferninho... antes que digam, eu digo: é pra ser assim!
Preciso dizer que deve ser visto?
Eles não precisam que eu diga. Mas digo: deve! Corra!
SESC BELENZINHO
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