O Teatro Musical ocupa um lugar ainda nebuloso na cabeça de produtores, dramaturgos e diretores. Fica entre show de talentos (como se fosse programa do Silvio), teatro escolar juke-box (em que pequenas cenas de humor servem só pra introduzir canções), ou teatro como a gente aprende na escola (aprende?), em que existem personagens passíveis de composição aprofundada – ainda que sejam personagens ligeiros e momentâneos, noção de conflito e ação (portanto, drama). E finalmente, alguns acham que basta ser show e tudo bem.
Teatro pode tudo? A rigor pode; e até nem carece de ter novidade. Mas é bom que tenha. Em especial quando se apresenta o velho disfarçado de novo. E, lamentavelmente, nada existe de novo em Rita Lee — Uma Biografia Musical.
E não se trata da reedição da montagem de Rita Lee Mora ao Lado de dez anos atrás. A única novidade é que os fãs devotos ficaram órfãos de sua Santa Rita.
Sobre a falta de novidades, outros exemplos não faltam. Fico com alguns dos muitos. De cara, a biografia nas mãos da performer indica que o espetáculo tratará de um livro que merece ser lido. É a tal biografia do título. Mas não a definitiva – outra ainda viria. A partir daí, veremos que a atriz se alternará entre representar e narrar (como se lesse e não como se falasse) os acontecimentos da vida da personagem-título, linearmente. A falta de criatividade desse exercício de escrita não pode ser incluída na categoria de dramaturgia; está mais para roteiro. E de uma previsibilidade absoluta.
Sigamos. Um palco todo branco com duas escadarias para hospedar projeções já foi visto antes em Mademoiselle Chanel, de Jorge Takla estrelado por Marília Pêra vinte anos atrás. Recurso, inclusive, realizado brilhantemente (o que não é o caso aqui). As fotos projetadas são de péssima qualidade e a edição de imagens parece powerpoint escolar – sem apresentar novidade nem dentro da mesma tela. A cenografia feita de elásticos lembra os palcos móveis criados por Osvaldo Gabrieli para sua montagem de Buster e o Enígma do Minotauro em 1997.
Em nossos tempos, depois de termos visto Laila Garin interpretando Elis Regina e Renan Mattos personificando Ney Matogrosso, fica difícil aceitar certas atuações baseadas em impressões mimetizadas, sem verossimilhança e quase caricatas.
No que diz respeito aos “números musicais”, assistir três mulheres em uniformes militares tendo epifanias sexuais atrás de uma mesa é praticamente “White Boys” do filme Hair (Milos Forman, 1981).
Por outro lado, show é show. Normalmente, um mostruário do que temos à mão e usamos para impressionar a audiência. E daí vira um vale-tudo: vale pedir aplauso para o público ao final de número musical (um ritual normalmente constrangedor); vale acender luz laser na cara do plateia; vale pedir pra todo mundo cantar junto.
E, em meio a tudo isso (a quem responsabilizo a direção) saio em defesa do elenco. É preciso ressaltar que o presente espetáculo traz a excelente performance de Mel Lisboa, que realiza um verdadeiro “tour-de-force” navegando entre depoimentos e canções, vagando entre uma Rita-personagem e uma Rita-narradora onisciente, além de encarar cenas escancaradamente brechtianas. Mel entrega sinceridade e profundidade no desempenho, além de integrar com extrema generosidade cenas de respiro cômico que ficam a cargo de seus colegas (em especial o trio formado por Débora Reis, Yael Pecarovich e a divertida Carol Portes). Lisboa é ainda o grande valor que nos faz engolir os contrarregras entrando e saindo de cena em momentos inadequados, as horrendas perucas sintéticas, o figurino caótico.
Mel entende de Rita. Entende sua vida e obra. Mais que isso: entende a relevância politica e social da obra de Rita como mulher, artista e cidadã. Parece compreender mais do que os responsáveis por roteiro e direção - sofríveis, pra dizer o mínimo. Ainda além, a coreografia e a direção de movimentos é constrangedora – faltam limpeza, tônus, narrativas corporais.
O roteiro não se decide sobre o que é: biografia lida, colagem de canções alinhavadas, ordem cronológica, delírios de memórias. É show? É performance? Teatro, propriamente dito, não é. Mas nada disso parece importar ao público e à plateia lota. Famílias inteiras estão vendo e ouvindo cultura brasileira. É geração de empregos em segmentos diversos, do táxi ao cafezinho, do palco ao estacionamento. E isso é muito!
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